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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Capuchinho Vermelho



  O dia amanhecera sombrio e Capuchinho Vermelho optou por sair bem cedo antes que uma tempestade desabasse. Sua mãe ainda dormia e não lhe deu vontade de sequer lhe escrever um bilhete para que não se preocupasse. A menina sentia imensas saudades de sua avó e pretendia levar-lhe naquele dia uma cesta de plantas medicinais, como forma de retribuir a generosidade da oferta de um amuleto contra o mau-olhado em forma de lagarto. Pé ante pé e vestindo a sua capa de oleado vermelha, lá se pôs a caminho. A sua casa era isolada e por esse motivo não se via ninguém durante meses naquela floresta, excepto lenhadores ocasionais. Mal colocou um pé fora de casa, apercebeu-se de um silêncio incómodo que certamente constituía um mau presságio. Como sua avó dizia, o mundo conhecia as tragédias muito antes de nós e era por esse mesmo motivo que o silêncio se impunha e os cães uivavam desoladamente.
  Caminhando com um cuidado excessivo, com um medo inconsciente de quebrar o sossego, capuchinho vermelho caminhou lentamente e foi colhendo algumas flores silvestres pelo caminho. Contudo, após cheirá-las com deleite, atirava-as ao chão e espezinhava-as pois sentia que toda a Natureza desdenhava a sua existência. Os pássaros cessavam de cantar à sua aproximação, veados fugiam esbaforidos ao sentirem o seu cheiro (que mal tinha o seu odor?) e crianças choravam sem parar se ela as tocava. Além disso sua mãe não gostava que a sua filha contactasse com ninguém, a não ser que fosse estritamente necessário. Pobrezinha; uma rapariguinha tão nova e já consciente da recusa do mundo pela sua existência.
  Quando se sentiu mais à vontade, correu e saltitou a uma velocidade invulgar, fazendo os ramos das árvores agitarem-se à sua breve passagem. À medida que avançava para o interior da floresta, encontrou o carreiro sombrio que ia dar à casa da avó, pois o cheiro, apesar de ténue, era acolhido por suas pequenas narinas. Não resistindo e ignorando os conselhos de sua mãe acerca de não enveredar por carreiros desconhecidos, Capuchinho Vermelho atirou a capa para trás e avançou corajosamente. Contudo, a sua mente começava a soçobrar aos ruídos estranhos que a rodeavam, imaginando inúmeros monstros e demónios em todas a sombras.
  Quando o caminho parecia nunca mais terminar, Capuchinho Vermelho avistou uma abertura lá ao longe no emaranhado de árvores, mas antes que pudesse sentir-se aliviada, um lobo enorme e cinzento-acastanhado saltou à sua frente. Sem emitir um único som, a menina recuou um passo e encostou o cesto com força ao peito.
« Que belo pitéu encontrei hoje. Há tanto tempo que não ferro o dente em carne fresca», parecia pensar o lobo que rosnava num tom baixo, ameaçador.
Abanando a cabeça várias vezes e abrindo muito os seus grandes olhos azuis, a criança virou-se para fugir, mas o lobo atirou-se a ela. Após uma luta feroz e silenciosa, Capuchinho Vermelho limpou uma lágrima e retirou os dentes que mordiam a traqueia do animal. Pesarosa, acariciou-lhe o pêlo macio e denso, dizendo com a sua vozinha inocente:
- Porque é que tiveste de te aproximar de mim e não fugiste como os outros? Eu não queria...tu é que começaste...
Rezando durante uns minutos pela alma do lobo, recolheu o seu cesto e as plantas espalhadas pelo chão e atirou o animal para cima do ombro, um volume ridiculamente grande para o seu tamanho diminuto.
Minutos depois, a menina bateu à porta da casa sombria de madeira e a porta abriu-se automaticamente. A sua avó fumava um cachimbo de ervas descontraidamente.
- Olá minha querida neta, vem cá. A menina obedeceu e poisou o lobo cuidadosamente em frente à lareira crepitante.
- Olá avó -cumprimentou a menina, subindo-lhe para os joelhos.
- Estou a ver que já te alimentaste. A pelagem e a carne aproveitar-se-ão bem.
-Obrigada - disse a avó, tentando ocultar o receio na sua voz que tremia ligeiramente.
- Avó?...
- Sim, querida netinha.
- Porque é que até tu tens medo de mim? - perguntou a menina inocentemente.
- Não é medo querida, apenas deves ter cuidado para não magoar ninguém. És muito, muito forte, a minha super netinha.
- Ah, está bem.
- Tens fome? -  perguntou a velha, sorrindo a custo.
Capuchinho Vermelho anuiu entusiasticamente.
Com um gemido de dor, a velha levantou-se a custo e foi matar uma galinha, vertendo o se sangue para dentro de uma caneca.
- Bebe minha linda.
- Obrigada avó.
- És muito educada e ajuizada, minha linha. Diz lá: quantos anos tens ao certo?
- Cinco anos, avó.

A Voz do Silêncio




O silêncio é uma companhia silenciosa,
Pássaro de grandes asas planando no nada,
O suave murmurar de uma nascente silenciosa,
Em sossego e contemplação melhor apreciada.

As árvores namoram o vento entre suas folhas,
O nevoeiro envolve o mundo em serenidade,
Locais de profundo silêncio são raras escolhas,
Só uma alma silenciosa conhece a profundidade.

Druidas caminham silenciosamente com seu cajado,
Pisando tapetes de folhas distribuídas pelo chão,
Feiticeiros contemplam ervas-mouras com ar apaixonado,
Pois o silêncio é dos sábios sua maior paixão.

As urzes, fetos e carvalhos coroam florestas,
Um santuário silencioso e antigo como o mundo,
Apenas interrompido por caçadas funestas,
O silêncio, uma melodia e um concerto profundo.

Sereno é o cair da chuva que soçobra docemente,
Pacífico é o anoitecer que suaviza e conforta,
Consola todo o coração cansado, doente,
Uma boa noite ao silêncio, fechando-se suavemente a porta.

Execução - Parte I




  Era um sombrio dia de Sábado e Sybilla saíra de sua cabana quando o vento começou a soprar com maior frescura naquela tarde de final de Verão. O céu soturno escurecia e ela conseguia escutar com clareza os murmúrios das ervas e das árvores. Descalça sobre o chão coberto de pedras e musgo seco, dirigiu-se para a margem do lago esverdeado e profundo, subindo para o seu pequeno barco. Sem que o empurrasse, a embarcação entrou no lago e vogou nas águas calmas, cobertas pela sombra dos imensos salgueiros, ancestrais como os ossos desconhecidos que repousavam naquele bosque. Por vezes Sybilla sentia a presença dos espíritos, seguindo-a por todo o lado com curiosidade. O vento espalhava o seu cabelo ruivo e rebelde, quente e brilhante com o tom de cobre e seus olhos azuis e frios eram um contraste no seu rosto pálido e na sumptuosidade da sua cabeleira forte. Aqueles olhos eram tão belos como terríveis, plenos de sabedoria e de uma calma aparente, a qual poderia ser perturbada pela mínima situação desagradável.
O fim viria em breve, ela sabia, mas não adiantava encolher-se num canto e lamentar a sua sorte. A sua vida havia sido suficientemente longa e os seus feitos completavam cada década que vivera. Há muito deixara de contar quantas luas sua idade contava  mas ainda era jovem e saudável, mais resistente que muitos homens e até soldados. Conviver em harmonia com os elementos granjeara-lhe uma força e sabedoria incríveis, dignas de qualquer feiticeira... Feiticeira, um nome que frequentemente utilizavam quando a abordavam, mas com um respeito e tremor calculado. Os aldeãos sabiam que não deveriam abusar da sua sorte, pois um feitiço seu poderia matar instantaneamente ou então matar lentamente, torturando a vítima até ela acabar por desejar morrer, delirando e enlouquecendo em agonia.
 Naquele Sábado os espíritos encontravam-se em harmonia com o seu espírito, sereno e impávido em relação às energias exteriores. O vento, o lago, as árvores, a sua alma. Todos se movimentavam numa dança vital, mas ao mesmo tempo estática e plena de poder.
 O ar esfriava, mas Sybilla nem sequer dava por isso, de olhos fechados e em contemplação, belíssima e de aspecto nobre, envergando apenas um vestido cinzento flutuante e o seu habitual colar de prata com o pendente de pentagrama.
Nessa noite ela não dormiu, colocando algumas roupas sob os cobertores de modo a camuflar a sua ausência. Quando eles chegassem para a matar, espetariam facas e forquilhas no seu colchão, mas não encontrariam nada. Ela encontrava-se na clareira do bosque, tão longínqua da segurança da aldeia que apenas lenhadores desesperados se atreviam a lá ir para apanhar madeira. Após recolher algumas ervas , atirou-as à fogueira e acrescentou  a erva-moura, as violetas e a camomila que guardava no seu saco de serapilheira. Imediatamente ergueu-se um fogo lilás e adocicado, enchendo o ar de perfume agridoce, semelhante ao cheiro das flores com as quais se velavam os mortos. Quando a lua ia alta no céu, os lobos uivaram e os mochos piaram, tecendo uma melodia fúnebre enquanto a feiticeira depositava no chão sete galhos em círculo à volta da fogueira. Cortando o pulso direito, pintou os troncos com as Runas Negras e salpicou o chão. Do seu saco retirou uma galinha preta morta e abriu-lhe a garganta, salpicando a fogueira com o sangue. Depois retirou-lhe as penas e atirou-as ao vento.

O sangue canta mais alto,
Ao chegar a última hora,
O espírito cedo se liberta,
Ao romper da aurora.

Sybilla recitava estes versos vezes sem conta enquanto caminhava num passo dançante em volta da fogueira, despindo a túnica enquanto se movia. A luz do luar iluminou o corpo despido e ela suspirou de prazer, embriagada pelo poder que afluía ao seu corpo dormente. Todavia a sua mente encontrava-se extremamente aguçada, sendo capaz de escutar o zumbir de uma mosca e o bater das asas de um morcego na gruta a quase um quilómetro de distância. Tal como uma feiticeira, Sybilla amava o seu corpo e a sua alma tanto como a Natureza em seu redor. Era um espírito livre, não se deixando prender por laços afectivos e dormindo com vários homens da aldeia que vinham ao seu encontro de livre vontade. Todos os Sábados um belo jovem ou homem mais maduro partilhavam o seu leito, voltando para casa na manhã seguinte meio drogados das suas ervas, aturdidos e enfraquecidos pelos cortes profundos em seus braços. Nenhum deles se lembrava do que acontecera na noite anterior. Apenas pensavam que tinham vagueado bêbados pelo bosque adentro.
A feiticeira era susceptível a sentimentos de luxúria, mas não se importava de curar quem quer que seja, sendo o pagamento pago em géneros, apenas por quem podia pagar. Na semana anterior dois meninos gémeos ardiam em febre e seus pais aflitos acorreram à Feiticeira, desesperados porque nem o padre nem o médico descobrira qual o seu mal. Sybilla cheirou o hálito das crianças e examinou-lhes as pupilas.
- Estas crianças estão possuídas - afirmou ela.
- Não pode ser, senhora. O padre não nos disse nada disso. Apenas pediu que rezássemos com fervor.
- Pois, só poderia ser – resmungou Sybilla de dentes cerrados com desprezo. Ela sabia que o padre gostava de manter as pessoas na ignorância porque receava os demónios acima de qualquer coisa. Há muito que Sybilla se libertara do medo.
- Malditos, amaldiçoados. Gente cretina que só sabe segurar o terço - começou a dizer uma das crianças. A outra mordia os dedos até fazer sangue e gritava como louca.
- Por acaso acham que isso é sinal de doença? - perguntou a feiticeira, apontando as crianças.
- Por favor, faça alguma coisa. Peça ao Pai Sol que os cure – implorou o pai.
- O pai Sol não existe a não ser na vossa cabeça, homem! O nosso único deus é a Natureza, a nossa mãe e divindade – contrariou Sybilla, admoestando-os como se se tratassem de crianças. Era o que aquela gente comum era.
- Vão-se embora e eu logo verei o que fazer – ordenou ela.
- Nem pensar! Sabe-se lá o que lhes fará se nos formos embora - retorquiu a mãe, cruzando teimosamente os braços.
- É assim que preferem?! Então desapareçam da minha vista com os vossos filhos amaldiçoados! - vociferou-lhes Sybilla, libertando um pouco do seu poder em suas palavras. Assustado, o casal baixou a cabeça e retirou-se apressadamente.
Sybilla olhou as crianças com desprezo, pois agora pouco restava delas. Pendurou um pentagrama de ouro sobre elas e entoou canções do Povo Antigo sem nunca lhe falhar a voz. Os rapazes gritavam e esperneavam, mas não se conseguiam mover, espumando pela boca de frustração. Por várias vezes ela ordenou-lhes que revelassem o seu nome, mas não obedeceram, escarnecendo dela. Por vezes bateram-lhe quando se aproximava mas não cedia, impávida e indiferente aos ferimentos. Derramou-lhes água de uma fonte virgem, enfraquecendo-os um pouco, mas cedo recuperaram. A crianças ainda se encontravam vivas não devido à fé e orações dos pais, mas sim porque Sybila não sucumbia, lutando durante toda a noite e nunca demonstrando receio, mesmo quando as crianças falaram com vozes guturais.
Quando já não havia nada a fazer, Sybilla perguntou-lhes:
- O que querem vós afinal, pelo nome da Deusa?!!
- Queremos a tua alma! - gritaram os demónios em uníssono.
- Vós, demónios e espíritos, sois tão fracos que apenas se conseguem manifestar claramente no corpo dos vivos. Insignificantes, não me metem medo.
Um deles tentou possuí-la e Sybilla conseguiu vislumbrar um rosto de fumo terrível, mas o seu espírito não vacilou e repeliu o demónio com imenso poder, fazendo-o uivar de agonia.
Quando o céu começou a clarear lentamente, os demónios forçaram as crianças a sufocarem-se a si próprias e a feiticeira nada conseguiu fazer. Nessa manhã os pais das crianças gritaram de dor e amaldiçoaram Sybilla, acusando-a de ter assassinado os seus filhos.

- Foram os demónios, seus ignorantes! Desapareçam!
 Sem provas não podiam fazer muito na aldeia mas Sybilla era demasiado perspicaz para não desconfiar do clero daquela aldeia nos confins de Vaticcania. Quando pensassem que a apanhariam desprevenida, matá-la-iam.
Quando Domingo amanheceu, Sybilla banhou-se no lago e vestiu a sua túnica negra de capuz, apenas usada em ocasiões que requeriam muita coragem e concentração. Era de seda negra simples, mas havia sido fortalecida no ritual de iniciação do seu mestre. Ao contrário do que se pensava, uma feiticeira não era educada por outra, mas sim por um feiticeiro e vice-versa, de modo a poderem ter relações sexuais pela primeira vez com alguém poderoso e do sexo complementar. O seu mestre fora o primeiro homem que a tivera e único que a cativou e traiu. Mas isso era outra história.