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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Dona Leonor








   Dona Leonor era uma distinta senhora, casada com um proeminente empresário e mãe de dois filhos. A sua vida aparentava ser impecável e decente, sem causar ondas nas correntes do universo. Não tinha vícios visíveis e não costumava sair muitas vezes de casa, preferindo permanecer no seu lar a arrumar os seus pertences e tudo o que necessitava, mandava uma empregada ir buscar aonde quer que fosse.
  Ninguém para além dos seus parentes a conhecia verdadeiramente e as pessoas com quem se cruzava na rua ou nas lojas achavam-na distante, porém educada. Andava sempre arrumada e bem vestida, com o cabelo loiro bem penteado e o rosto discretamente maquilhado. Todos os comerciantes consideravam-na uma boa cliente e geralmente não teciam-lhe mais críticas, visto não terem nada a apontar-lhe. Contudo, os mais atentos podiam vislumbrar o que de pior havia naquela senhora, caso olhassem para além da sua agradável aparência e dos seus gestos suaves. Os mendigos de roupas esfarrapadas e as suas empregadas mais humildes e destituídas de uma boa fisionomia e elegância eram alvo do seu desprezo, tal como os idosos que por ela passavam na rua, meros transeuntes indignos de serem contemplados pelos seus olhos. Dona Leonor convivia com as mais altas esferas da sociedade e relegava para último lugar tudo o que não fosse de seu esteticamente sensível agrado. Seria inconcebível alguma das vis criaturas que povoavam as ruas embaterem na sua sofisticada pessoa.
 Enquanto o seu marido trabalhava e as suas crianças ficavam ao cuidado das amas, entretinha-se a olhar-se ao espelho durante horas, a experimentar as suas incontáveis jóias, os inúmeros sapatos exclusivos e os seus perfumes caros. De vez em quando recebia em seus aposentos um ou outro amante ocasional, desfrutando das adulações e elogios que constantemente lhe teciam. Nas festas que frequentava com seu marido chegava sempre em último lugar, deleitava-se com os olhares de admiração ou de inveja, sentindo-se superior e rainha de todos os que à sua volta se encontravam, pois ela sim era uma fiel adepta da verdadeira beleza. Contudo, o invólucro do seu ser que era o seu corpo, retinha um espírito vazio, despojado de toda a humanidade. O seu único medo e o qual não revelava a ninguém, era nada mais nada menos que envelhecer. Era o que a atormentava dia e noite sem que ninguém soubesse, o que a fazia mirar-se vezes sem conta ao espelho, temendo encontrar uma falha na sua juventude que com o tempo de esvaía.
No dia em que fez trinta e cinco anos, convidou para a sua festa de aniversário as figuras mais ilustres e não hesitou em deixar de fora a sua amiga mais chegada, a qual encontrava-se muito doente e com a pele coberta de chagas, segundo haviam-lhe dito. Naquela fatídica noite ficou a arranjar-se no quarto enquanto o seu marido recebia os convidados e passada uma hora e meia, surgindo finalmente no cimo da escadaria de mármore que ia dar ao enorme vestíbulo, onde a aguardavam ansiosamente. Adornada com diamantes refulgentes e envergando um magnífico vestido de seda vermelha que contrastava com a sua pele de marfim, desceu as escadas com vagar e não resistiu em olhar para o espelho que se encontrava no segundo patamar. O que lá viu fê-la arquejar de horror e vacilar um pouco, esforçando-se por conter-se logo de seguida. Parecia-lhe ter visto um rosto cadavérico e com a carne putrefacta, como a de um cadáver no início da sua decomposição. Decerto seria uma ilusão devido à ansiedade que sentia. Quando a convidaram para dançar, avistou no vidro da janela que tinha vista para o jardim o mesmo rosto e desviou imediatamente o olhar, concentrando-se no seu par de dança. Rodopiando pelo vestíbulo com os seus passos elegantes, não conseguiu ignorar os espelhos que cobriam as paredes e o tecto e sentiu-se quase a desfalecer quando viu a figura putrefacta multiplicada em todos os espelhos. Ajudaram-na a sentar-se numa cadeira e deram-lhe um copo com água, acalmando-a um pouco e trouxeram o seu enorme bolo de aniversário, pousando-o á sua frente para que ela soprasse as velas. Antes de soprar, fechou os olhos e pediu o seu desejo. Uma corrente de ar frio trespassou-a e começou a sentir frio. Evitando olhar para o seu reflexo nas superfícies espelhadas, apressou-se a ir buscar ao seu quarto um xaile e, ao abrir a gaveta do aparador, olhou receosamente para o espelho que o encimava e não ficou surpreendida ao voltar a ver o rosto hediondo. Apesar de horripilante, lembrava-lhe a sua própria fisionomia, os seus próprios traços delicados.
- Sim Leonor, esta é tu, por assim dizer.
Assustada, olhou para a sua cama e viu a mulher que tão bem conhecia sentada no seu leito, com a sua pele isenta de feridas, limpa como antes fora. Queria perguntar-lhe como era possível que ela se encontrasse naquele quarto mas ficara emudecida com o choque.
Adivinhando os seus pensamentos, a sua velha amiga continuou:
- Este não é o meu corpo material, apenas o meu espírito. Vim fazer-te uma última visita e avisar-te que deves ter cuidado com a vida que levas. Deixa de viver tão obcecada com o que aparentas e aprende a cultivar o teu interior, pois esse sim encontra-se a apodrecer, uma vez que o ignoras por completo. Tens um bom marido e dois filhos maravilhosos. Tens beleza e fortuna. Contudo, só dás atenção a ti própria e ao que aparentas. Muda enquanto é tempo. Muda…
 Numa lufada de ar gélido a mulher desapareceu e Leonor deixou-se cair no chão, tentando respirar e recompor-se, de modo a voltar a juntar-se à festa. Lembrou-se do desejo que pediu ao soprar as velas. Tinha desejado que mais ninguém a não ser ela própria se apercebesse de todos os defeitos que surgissem com a idade. Desejava ser sempre admirada e invejada, ser sempre uma musa entre as musas. E assim teria de ser. Ao levantar-se sentiu que o espelho à sua frente a chamava e mais uma vez quis contemplar o seu reflexo. Desta vez deu um grito estridente, pois o seu rosto já não parecia putrefacto. Era agora uma caveira sem pele nem carne, os seus olhos apenas duas órbitas vazias. Não era apenas aquela visão que tanto a horrorizava mas sim o que significava. Agora entendia o que se passava: o reflexo distorcida que vira em todos os espelhos nada mais era que o reflexo do seu interior hediondo, o reflexo do seu espírito conspurcado pela vaidade e pelo narcisismo. Tal como Narciso, não conseguia deixar de olhar para o seu reflexo, indiferente ao facto de que os espelhos não mentiam. O desejo que pedira fora concedido da pior maneira. Seria impossível viver assim o resto dos seus dias, sem que enlouquecesse de vez.
 Ao ouvir os passos de alguém a subir os degraus em direcção ao quarto, correu para a varanda, fechou a porta e contemplou uma última vez o seu adorado jardim antes de subir para o corrimão da varanda e atira-se dela abaixo. A visão do seu corpo esmagado nas lajes de pedra era tudo menos agradável à vista, contrariamente ao que havia sido em vida.