Postagens populares

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Execução - Parte I




  Era um sombrio dia de Sábado e Sybilla saíra de sua cabana quando o vento começou a soprar com maior frescura naquela tarde de final de Verão. O céu soturno escurecia e ela conseguia escutar com clareza os murmúrios das ervas e das árvores. Descalça sobre o chão coberto de pedras e musgo seco, dirigiu-se para a margem do lago esverdeado e profundo, subindo para o seu pequeno barco. Sem que o empurrasse, a embarcação entrou no lago e vogou nas águas calmas, cobertas pela sombra dos imensos salgueiros, ancestrais como os ossos desconhecidos que repousavam naquele bosque. Por vezes Sybilla sentia a presença dos espíritos, seguindo-a por todo o lado com curiosidade. O vento espalhava o seu cabelo ruivo e rebelde, quente e brilhante com o tom de cobre e seus olhos azuis e frios eram um contraste no seu rosto pálido e na sumptuosidade da sua cabeleira forte. Aqueles olhos eram tão belos como terríveis, plenos de sabedoria e de uma calma aparente, a qual poderia ser perturbada pela mínima situação desagradável.
O fim viria em breve, ela sabia, mas não adiantava encolher-se num canto e lamentar a sua sorte. A sua vida havia sido suficientemente longa e os seus feitos completavam cada década que vivera. Há muito deixara de contar quantas luas sua idade contava  mas ainda era jovem e saudável, mais resistente que muitos homens e até soldados. Conviver em harmonia com os elementos granjeara-lhe uma força e sabedoria incríveis, dignas de qualquer feiticeira... Feiticeira, um nome que frequentemente utilizavam quando a abordavam, mas com um respeito e tremor calculado. Os aldeãos sabiam que não deveriam abusar da sua sorte, pois um feitiço seu poderia matar instantaneamente ou então matar lentamente, torturando a vítima até ela acabar por desejar morrer, delirando e enlouquecendo em agonia.
 Naquele Sábado os espíritos encontravam-se em harmonia com o seu espírito, sereno e impávido em relação às energias exteriores. O vento, o lago, as árvores, a sua alma. Todos se movimentavam numa dança vital, mas ao mesmo tempo estática e plena de poder.
 O ar esfriava, mas Sybilla nem sequer dava por isso, de olhos fechados e em contemplação, belíssima e de aspecto nobre, envergando apenas um vestido cinzento flutuante e o seu habitual colar de prata com o pendente de pentagrama.
Nessa noite ela não dormiu, colocando algumas roupas sob os cobertores de modo a camuflar a sua ausência. Quando eles chegassem para a matar, espetariam facas e forquilhas no seu colchão, mas não encontrariam nada. Ela encontrava-se na clareira do bosque, tão longínqua da segurança da aldeia que apenas lenhadores desesperados se atreviam a lá ir para apanhar madeira. Após recolher algumas ervas , atirou-as à fogueira e acrescentou  a erva-moura, as violetas e a camomila que guardava no seu saco de serapilheira. Imediatamente ergueu-se um fogo lilás e adocicado, enchendo o ar de perfume agridoce, semelhante ao cheiro das flores com as quais se velavam os mortos. Quando a lua ia alta no céu, os lobos uivaram e os mochos piaram, tecendo uma melodia fúnebre enquanto a feiticeira depositava no chão sete galhos em círculo à volta da fogueira. Cortando o pulso direito, pintou os troncos com as Runas Negras e salpicou o chão. Do seu saco retirou uma galinha preta morta e abriu-lhe a garganta, salpicando a fogueira com o sangue. Depois retirou-lhe as penas e atirou-as ao vento.

O sangue canta mais alto,
Ao chegar a última hora,
O espírito cedo se liberta,
Ao romper da aurora.

Sybilla recitava estes versos vezes sem conta enquanto caminhava num passo dançante em volta da fogueira, despindo a túnica enquanto se movia. A luz do luar iluminou o corpo despido e ela suspirou de prazer, embriagada pelo poder que afluía ao seu corpo dormente. Todavia a sua mente encontrava-se extremamente aguçada, sendo capaz de escutar o zumbir de uma mosca e o bater das asas de um morcego na gruta a quase um quilómetro de distância. Tal como uma feiticeira, Sybilla amava o seu corpo e a sua alma tanto como a Natureza em seu redor. Era um espírito livre, não se deixando prender por laços afectivos e dormindo com vários homens da aldeia que vinham ao seu encontro de livre vontade. Todos os Sábados um belo jovem ou homem mais maduro partilhavam o seu leito, voltando para casa na manhã seguinte meio drogados das suas ervas, aturdidos e enfraquecidos pelos cortes profundos em seus braços. Nenhum deles se lembrava do que acontecera na noite anterior. Apenas pensavam que tinham vagueado bêbados pelo bosque adentro.
A feiticeira era susceptível a sentimentos de luxúria, mas não se importava de curar quem quer que seja, sendo o pagamento pago em géneros, apenas por quem podia pagar. Na semana anterior dois meninos gémeos ardiam em febre e seus pais aflitos acorreram à Feiticeira, desesperados porque nem o padre nem o médico descobrira qual o seu mal. Sybilla cheirou o hálito das crianças e examinou-lhes as pupilas.
- Estas crianças estão possuídas - afirmou ela.
- Não pode ser, senhora. O padre não nos disse nada disso. Apenas pediu que rezássemos com fervor.
- Pois, só poderia ser – resmungou Sybilla de dentes cerrados com desprezo. Ela sabia que o padre gostava de manter as pessoas na ignorância porque receava os demónios acima de qualquer coisa. Há muito que Sybilla se libertara do medo.
- Malditos, amaldiçoados. Gente cretina que só sabe segurar o terço - começou a dizer uma das crianças. A outra mordia os dedos até fazer sangue e gritava como louca.
- Por acaso acham que isso é sinal de doença? - perguntou a feiticeira, apontando as crianças.
- Por favor, faça alguma coisa. Peça ao Pai Sol que os cure – implorou o pai.
- O pai Sol não existe a não ser na vossa cabeça, homem! O nosso único deus é a Natureza, a nossa mãe e divindade – contrariou Sybilla, admoestando-os como se se tratassem de crianças. Era o que aquela gente comum era.
- Vão-se embora e eu logo verei o que fazer – ordenou ela.
- Nem pensar! Sabe-se lá o que lhes fará se nos formos embora - retorquiu a mãe, cruzando teimosamente os braços.
- É assim que preferem?! Então desapareçam da minha vista com os vossos filhos amaldiçoados! - vociferou-lhes Sybilla, libertando um pouco do seu poder em suas palavras. Assustado, o casal baixou a cabeça e retirou-se apressadamente.
Sybilla olhou as crianças com desprezo, pois agora pouco restava delas. Pendurou um pentagrama de ouro sobre elas e entoou canções do Povo Antigo sem nunca lhe falhar a voz. Os rapazes gritavam e esperneavam, mas não se conseguiam mover, espumando pela boca de frustração. Por várias vezes ela ordenou-lhes que revelassem o seu nome, mas não obedeceram, escarnecendo dela. Por vezes bateram-lhe quando se aproximava mas não cedia, impávida e indiferente aos ferimentos. Derramou-lhes água de uma fonte virgem, enfraquecendo-os um pouco, mas cedo recuperaram. A crianças ainda se encontravam vivas não devido à fé e orações dos pais, mas sim porque Sybila não sucumbia, lutando durante toda a noite e nunca demonstrando receio, mesmo quando as crianças falaram com vozes guturais.
Quando já não havia nada a fazer, Sybilla perguntou-lhes:
- O que querem vós afinal, pelo nome da Deusa?!!
- Queremos a tua alma! - gritaram os demónios em uníssono.
- Vós, demónios e espíritos, sois tão fracos que apenas se conseguem manifestar claramente no corpo dos vivos. Insignificantes, não me metem medo.
Um deles tentou possuí-la e Sybilla conseguiu vislumbrar um rosto de fumo terrível, mas o seu espírito não vacilou e repeliu o demónio com imenso poder, fazendo-o uivar de agonia.
Quando o céu começou a clarear lentamente, os demónios forçaram as crianças a sufocarem-se a si próprias e a feiticeira nada conseguiu fazer. Nessa manhã os pais das crianças gritaram de dor e amaldiçoaram Sybilla, acusando-a de ter assassinado os seus filhos.

- Foram os demónios, seus ignorantes! Desapareçam!
 Sem provas não podiam fazer muito na aldeia mas Sybilla era demasiado perspicaz para não desconfiar do clero daquela aldeia nos confins de Vaticcania. Quando pensassem que a apanhariam desprevenida, matá-la-iam.
Quando Domingo amanheceu, Sybilla banhou-se no lago e vestiu a sua túnica negra de capuz, apenas usada em ocasiões que requeriam muita coragem e concentração. Era de seda negra simples, mas havia sido fortalecida no ritual de iniciação do seu mestre. Ao contrário do que se pensava, uma feiticeira não era educada por outra, mas sim por um feiticeiro e vice-versa, de modo a poderem ter relações sexuais pela primeira vez com alguém poderoso e do sexo complementar. O seu mestre fora o primeiro homem que a tivera e único que a cativou e traiu. Mas isso era outra história.

Sem comentários:

Enviar um comentário