Era um sombrio dia de Sábado e Sybilla saíra de sua cabana
quando o vento começou a soprar com maior frescura naquela tarde de final de
Verão. O céu soturno escurecia e ela conseguia escutar com clareza os murmúrios
das ervas e das árvores. Descalça sobre o chão coberto de pedras e musgo seco,
dirigiu-se para a margem do lago esverdeado e profundo, subindo para o seu
pequeno barco. Sem que o empurrasse, a embarcação entrou no lago e vogou nas
águas calmas, cobertas pela sombra dos imensos salgueiros, ancestrais como os
ossos desconhecidos que repousavam naquele bosque. Por vezes Sybilla sentia a
presença dos espíritos, seguindo-a por todo o lado com curiosidade. O vento
espalhava o seu cabelo ruivo e rebelde, quente e brilhante com o tom de cobre
e seus olhos azuis e frios eram um contraste no seu rosto pálido e na
sumptuosidade da sua cabeleira forte. Aqueles olhos eram tão belos como
terríveis, plenos de sabedoria e de uma calma aparente, a qual poderia ser
perturbada pela mínima situação desagradável.
O fim viria em breve, ela sabia, mas não adiantava
encolher-se num canto e lamentar a sua sorte. A sua vida havia sido
suficientemente longa e os seus feitos completavam cada década que vivera. Há
muito deixara de contar quantas luas sua idade contava mas ainda era jovem e
saudável, mais resistente que muitos homens e até soldados. Conviver em
harmonia com os elementos granjeara-lhe uma força e sabedoria incríveis, dignas
de qualquer feiticeira... Feiticeira, um nome que frequentemente utilizavam
quando a abordavam, mas com um respeito e tremor calculado. Os aldeãos sabiam
que não deveriam abusar da sua sorte, pois um feitiço seu poderia matar
instantaneamente ou então matar lentamente, torturando a vítima até ela acabar
por desejar morrer, delirando e enlouquecendo em agonia.
Naquele Sábado os espíritos encontravam-se em harmonia com o
seu espírito, sereno e impávido em relação às energias exteriores. O vento, o
lago, as árvores, a sua alma. Todos se movimentavam numa dança vital, mas ao
mesmo tempo estática e plena de poder.
O ar esfriava, mas Sybilla nem sequer dava por isso, de
olhos fechados e em contemplação, belíssima e de aspecto nobre, envergando
apenas um vestido cinzento flutuante e o seu habitual colar de prata com o
pendente de pentagrama.
Nessa noite ela não dormiu, colocando algumas roupas sob os
cobertores de modo a camuflar a sua ausência. Quando eles chegassem para a
matar, espetariam facas e forquilhas no seu colchão, mas não encontrariam nada.
Ela encontrava-se na clareira do bosque, tão longínqua da segurança da aldeia
que apenas lenhadores desesperados se atreviam a lá ir para apanhar madeira.
Após recolher algumas ervas , atirou-as à fogueira e acrescentou a erva-moura,
as violetas e a camomila que guardava no seu saco de serapilheira. Imediatamente
ergueu-se um fogo lilás e adocicado, enchendo o ar de perfume agridoce,
semelhante ao cheiro das flores com as quais se velavam os mortos. Quando a lua
ia alta no céu, os lobos uivaram e os mochos piaram, tecendo uma melodia
fúnebre enquanto a feiticeira depositava no chão sete galhos em círculo à
volta da fogueira. Cortando o pulso direito, pintou os troncos com as Runas
Negras e salpicou o chão. Do seu saco retirou uma galinha preta morta e
abriu-lhe a garganta, salpicando a fogueira com o sangue. Depois retirou-lhe as
penas e atirou-as ao vento.
O sangue canta mais alto,
Ao chegar a última hora,
O espírito cedo se liberta,
Ao romper da aurora.
Sybilla recitava estes versos vezes sem conta enquanto
caminhava num passo dançante em volta da fogueira, despindo a túnica enquanto
se movia. A luz do luar iluminou o corpo despido e ela suspirou de prazer,
embriagada pelo poder que afluía ao seu corpo dormente. Todavia a sua mente
encontrava-se extremamente aguçada, sendo capaz de escutar o zumbir de uma mosca
e o bater das asas de um morcego na gruta a quase um quilómetro de distância.
Tal como uma feiticeira, Sybilla amava o seu corpo e a sua alma tanto como a
Natureza em seu redor. Era um espírito livre, não se deixando prender por laços
afectivos e dormindo com vários homens da aldeia que vinham ao seu encontro de
livre vontade. Todos os Sábados um belo jovem ou homem mais maduro partilhavam
o seu leito, voltando para casa na manhã seguinte meio drogados das suas ervas,
aturdidos e enfraquecidos pelos cortes profundos em seus braços. Nenhum deles
se lembrava do que acontecera na noite anterior. Apenas pensavam que tinham
vagueado bêbados pelo bosque adentro.
A feiticeira era susceptível a sentimentos de luxúria, mas
não se importava de curar quem quer que seja, sendo o pagamento pago em
géneros, apenas por quem podia pagar. Na semana anterior dois meninos gémeos
ardiam em febre e seus pais aflitos acorreram à Feiticeira, desesperados porque
nem o padre nem o médico descobrira qual o seu mal. Sybilla cheirou o hálito
das crianças e examinou-lhes as pupilas.
- Estas crianças estão possuídas - afirmou ela.
- Não pode ser, senhora. O padre não nos disse nada disso.
Apenas pediu que rezássemos com fervor.
- Pois, só poderia ser – resmungou Sybilla de dentes cerrados
com desprezo. Ela sabia que o padre gostava de manter as pessoas na ignorância
porque receava os demónios acima de qualquer coisa. Há muito que Sybilla se
libertara do medo.
- Malditos, amaldiçoados. Gente cretina que só sabe segurar
o terço - começou a dizer uma das crianças. A outra mordia os dedos até fazer
sangue e gritava como louca.
- Por acaso acham que isso é sinal de doença? - perguntou a
feiticeira, apontando as crianças.
- Por favor, faça alguma coisa. Peça ao Pai Sol que os cure
– implorou o pai.
- O pai Sol não existe a não ser na vossa cabeça, homem! O
nosso único deus é a Natureza, a nossa mãe e divindade – contrariou Sybilla,
admoestando-os como se se tratassem de crianças. Era o que aquela gente comum
era.
- Vão-se embora e eu logo verei o que fazer – ordenou ela.
- Nem pensar! Sabe-se lá o que lhes fará se nos formos
embora - retorquiu a mãe, cruzando teimosamente os braços.
- É assim que preferem?! Então desapareçam da minha vista
com os vossos filhos amaldiçoados! - vociferou-lhes Sybilla, libertando um
pouco do seu poder em suas palavras. Assustado, o casal baixou a cabeça e
retirou-se apressadamente.
Sybilla olhou as crianças com desprezo, pois agora pouco
restava delas. Pendurou um pentagrama de ouro sobre elas e entoou canções do
Povo Antigo sem nunca lhe falhar a voz. Os rapazes gritavam e esperneavam, mas
não se conseguiam mover, espumando pela boca de frustração. Por várias vezes
ela ordenou-lhes que revelassem o seu nome, mas não obedeceram, escarnecendo
dela. Por vezes bateram-lhe quando se aproximava mas não cedia, impávida e
indiferente aos ferimentos. Derramou-lhes água de uma fonte virgem,
enfraquecendo-os um pouco, mas cedo recuperaram. A crianças ainda se
encontravam vivas não devido à fé e orações dos pais, mas sim porque Sybila não
sucumbia, lutando durante toda a noite e nunca demonstrando receio, mesmo
quando as crianças falaram com vozes guturais.
Quando já não havia nada a fazer, Sybilla perguntou-lhes:
- O que querem vós afinal, pelo nome da Deusa?!!
- Queremos a tua alma! - gritaram os demónios em uníssono.
- Vós, demónios e espíritos, sois tão fracos que apenas se
conseguem manifestar claramente no corpo dos vivos. Insignificantes, não me
metem medo.
Um deles tentou possuí-la e Sybilla conseguiu vislumbrar um
rosto de fumo terrível, mas o seu espírito não vacilou e repeliu o demónio com
imenso poder, fazendo-o uivar de agonia.
Quando o céu começou a clarear lentamente, os demónios
forçaram as crianças a sufocarem-se a si próprias e a feiticeira nada conseguiu fazer. Nessa manhã os pais das crianças gritaram de dor e amaldiçoaram Sybilla,
acusando-a de ter assassinado os seus filhos.
- Foram os demónios, seus ignorantes! Desapareçam!
Sem provas não podiam fazer muito na aldeia mas Sybilla era
demasiado perspicaz para não desconfiar do clero daquela aldeia nos confins de
Vaticcania. Quando pensassem que a apanhariam desprevenida, matá-la-iam.
Quando Domingo amanheceu, Sybilla banhou-se no lago e vestiu
a sua túnica negra de capuz, apenas usada em ocasiões que requeriam muita
coragem e concentração. Era de seda negra simples, mas havia sido fortalecida
no ritual de iniciação do seu mestre. Ao contrário do que se pensava, uma
feiticeira não era educada por outra, mas sim por um feiticeiro e vice-versa,
de modo a poderem ter relações sexuais pela primeira vez com alguém poderoso e
do sexo complementar. O seu mestre fora o primeiro homem que a tivera e único
que a cativou e traiu. Mas isso era outra história.
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