O dia amanhecera sombrio e Capuchinho Vermelho optou por
sair bem cedo antes que uma tempestade desabasse. Sua mãe ainda dormia e não
lhe deu vontade de sequer lhe escrever um bilhete para que não se preocupasse.
A menina sentia imensas saudades de sua avó e pretendia levar-lhe naquele dia
uma cesta de plantas medicinais, como forma de retribuir a generosidade da
oferta de um amuleto contra o mau-olhado em forma de lagarto. Pé ante pé e
vestindo a sua capa de oleado vermelha, lá se pôs a caminho. A sua casa era
isolada e por esse motivo não se via ninguém durante meses naquela floresta,
excepto lenhadores ocasionais. Mal colocou um pé fora de casa, apercebeu-se de
um silêncio incómodo que certamente constituía um mau presságio. Como sua avó
dizia, o mundo conhecia as tragédias muito antes de nós e era por esse mesmo
motivo que o silêncio se impunha e os cães uivavam desoladamente.
Caminhando com um cuidado excessivo, com um medo
inconsciente de quebrar o sossego, capuchinho vermelho caminhou lentamente e
foi colhendo algumas flores silvestres pelo caminho. Contudo, após cheirá-las
com deleite, atirava-as ao chão e espezinhava-as pois sentia que toda a
Natureza desdenhava a sua existência. Os pássaros cessavam de cantar à sua
aproximação, veados fugiam esbaforidos ao sentirem o seu cheiro (que mal tinha
o seu odor?) e crianças choravam sem parar se ela as tocava. Além disso sua mãe
não gostava que a sua filha contactasse com ninguém, a não ser que fosse
estritamente necessário. Pobrezinha; uma rapariguinha tão nova e já consciente
da recusa do mundo pela sua existência.
Quando se sentiu mais à vontade, correu e saltitou a uma
velocidade invulgar, fazendo os ramos das árvores agitarem-se à sua breve
passagem. À medida que avançava para o interior da floresta, encontrou o
carreiro sombrio que ia dar à casa da avó, pois o cheiro, apesar de ténue, era
acolhido por suas pequenas narinas. Não resistindo e ignorando os conselhos de
sua mãe acerca de não enveredar por carreiros desconhecidos, Capuchinho
Vermelho atirou a capa para trás e avançou corajosamente. Contudo, a sua mente
começava a soçobrar aos ruídos estranhos que a rodeavam, imaginando inúmeros
monstros e demónios em todas a sombras.
Quando o caminho parecia nunca mais terminar, Capuchinho
Vermelho avistou uma abertura lá ao longe no emaranhado de árvores, mas antes
que pudesse sentir-se aliviada, um lobo enorme e cinzento-acastanhado saltou à
sua frente. Sem emitir um único som, a menina recuou um passo e encostou o cesto
com força ao peito.
« Que belo pitéu encontrei hoje. Há tanto tempo que não
ferro o dente em carne fresca», parecia pensar o lobo que rosnava num tom
baixo, ameaçador.
Abanando a cabeça várias vezes e abrindo muito os seus
grandes olhos azuis, a criança virou-se para fugir, mas o lobo atirou-se a ela.
Após uma luta feroz e silenciosa, Capuchinho Vermelho limpou uma lágrima e
retirou os dentes que mordiam a traqueia do animal. Pesarosa, acariciou-lhe o
pêlo macio e denso, dizendo com a sua vozinha inocente:
- Porque é que tiveste de te aproximar de mim e não fugiste
como os outros? Eu não queria...tu é que começaste...
Rezando durante uns minutos pela alma do lobo, recolheu o
seu cesto e as plantas espalhadas pelo chão e atirou o animal para cima do
ombro, um volume ridiculamente grande para o seu tamanho diminuto.
Minutos depois, a menina bateu à porta da casa sombria de
madeira e a porta abriu-se automaticamente. A sua avó fumava um cachimbo de
ervas descontraidamente.
- Olá minha querida neta, vem cá. A menina obedeceu e poisou
o lobo cuidadosamente em frente à lareira crepitante.
- Olá avó -cumprimentou a menina, subindo-lhe para os
joelhos.
- Estou a ver que já te alimentaste. A pelagem e a carne
aproveitar-se-ão bem.
-Obrigada - disse a avó, tentando ocultar o receio na sua
voz que tremia ligeiramente.
- Avó?...
- Sim, querida netinha.
- Porque é que até tu tens medo de mim? - perguntou a menina
inocentemente.
- Não é medo querida, apenas deves ter cuidado para não
magoar ninguém. És muito, muito forte, a minha super netinha.
- Ah, está bem.
- Tens fome? - perguntou a velha, sorrindo a custo.
Capuchinho Vermelho anuiu entusiasticamente.
Com um gemido de dor, a velha levantou-se a custo e foi
matar uma galinha, vertendo o se sangue para dentro de uma caneca.
- Bebe minha linda.
- Obrigada avó.
- És muito educada e ajuizada, minha linha. Diz lá: quantos
anos tens ao certo?
- Cinco anos, avó.
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