Pouco antes do anoitecer, Sybilla sentiu a estranha vibração
da terra que reflectia as energias malignas e negativas de quem a pisava. Os
carrascos vinham aí e ela estava preparada.
Contudo, em vez de se
deixar ficar à espera que a apanhassem, esperou que os atacantes surgissem detrás dos ramos dos salgueiros e deu um grito forçado. Alguns homens armados
olharam em volta confusos, acabando por avistar um vulto de negro correr
velozmente por entre as árvores. Fingindo-se assustada, a feiticeira olhava
para trás diversas vezes, deixando indícios de sua presença de propósito.
Ziguezagueando pelo bosque, conseguiu despistar os seus perseguidores durante
vários minutos, apesar de os cães de caça ajudarem sobremaneira na busca.
Quando se aproximaram perigosamente, Sybilla abrandou a corrida desenfreada e
deixou que o soldado mais veloz a agarrasse por trás, prendendo - lhe os braços
atrás das costas. Em vez de se tentar libertar, a mulher riu com escárnio, suas
gargalhadas loucas ecoando pela imensidão do bosque. Os homens mostraram-se
incomodados e confusos, depreendendo pelo seu estranho comportamento que a
mulher era completamente louca. Mais três soldados rodearam-na e içaram-na
bruscamente sobre uma carroça, a qual transportava uma jaula de metal
enferrujado. Após trancarem a jaula, limparam o suor do rosto devido ao calor
anormal que se fazia sentir.
- Ainda tendes vontade de rir? - Perguntou-lhe um deles com
desdém.
Sybilla respondeu-lhe com uma rosnadela:
- Vós sois mesmo patéticos. Acham que vos receio? Não
passais de peões num jogo maior.
- Calai-vos, bruxa maldita – ordenou-lhe o que parecia mais
velho e o que menos escondia o facto de estar a admirar as suas pernas semi -
expostas.
- Ah, gostais do que vedes? - Pois contentai-vos apenas em
olhar.
O homem evitou o seu olhar e limitou-se a cuspir para o
chão.
- Vamos, acabou-se o descanso - anunciou ele pouco tempo
depois.
Os homens rodearam a jaula e caminharam em silêncio.
Estranhamente, o cavalo que transportava a carroça mostrava-se nervoso e não
parava de resfolegar, enquanto a feiticeira murmurava palavras numa língua
estranha. Por vezes um dos soldados necessitavam de se aproximar da carroça e
abri-la para confirmar que a mulher ainda se encontrava na sua prisão. Isto
porque por momentos parecia que ela desaparecia e reaparecia após alguns minutos. Cada vez que um captor procurava na jaula, afastava-se com um profundo
golpe na face, fazendo - o uivar de dor. Enquanto a estranha escolta avançava,
o ar parecia tornar-se mais pesado e obscuro, como se aquele lugar estivesse
assombrado. Mesmo sem confessar o seu medo, os soldados aproximaram-se mais uns
dos outros, temendo ser atacados por algum espírito maligno.
- Cobardes - dizia Sybilla com desdém.
O sol encontrava-se sobre o horizonte quando alcançaram uma
gruta ampla e cheirando levemente ao sangue abundante e ferroso. Do seu
interior saiu um homem alto e robusto de cabelo prematuramente grisalho,
acompanhado por um jovem mais baixo e franzino, mas belo e no auge da sua
juventude, de cabelos tão dourados como os de um querubim. Ambos envergavam
vestes brancas e um colar pesado com uma medalha de ouro contendo um sol de
vários raios no seu interior em baixo – relevo. Apenas o homem alto envergava
uma estola vermelha – escura sobre os ombros.
Sybilla dardejou-lhes um olhar cheio de ódio e proferiu
obscenidades em voz baixa, mas audível.
- Aproximem a acusada - ordenou o homem corpulento com
firmeza.
Dois soldados retiraram-na da jaula e seguiram os
sacerdotes, praticamente arrastando a feiticeira.
- Sabeis porque estais aqui? - Perguntou-lhe o homem da
estola sem a fitar.
- Porque não me dizes tu, monstro? - Retorquiu-lhe ela,
arreganhando-lhe os dentes num sorriso feroz.
Sem ter visto de onde, uma mão pesada esbofeteou-lhe o
rosto, rasgando-lhe o lábio.
- Tratai o Diácono com respeito! - Ordenou-lhe uma voz.
O soldado que se encontrava atrás empurrou-a para a frente,
fazendo-a cair de joelhos e não a deixando levantar. Quando ela ia proferir
algo mais, o Diácono levantou uma mão, impedindo os soldados de agredirem a ré.
- Estais cativa e sois acusada de heresia e do homicídio de
duas crianças por estrangulamento.
- Acreditais mesmo nisso, padre? Não achais que sou
carinhosa? - Perguntou-lhe Sybilla com um sorriso provocante, fazendo o Diácono
corar levemente.
- Como vos atreveis?!... - Rosnou o Diácono, mas logo
recuperou a compostura.
- Mantendes pactos com o demónio e isso é imperdoável aos
olhos do Pai - Sol, aquele que só contém pureza.
Sybilla bufou e cuspiu para pés do Diácono com desdém, rindo
histericamente quando outra bofetada violenta a atingiu.
O jovem que ladeava o Diácono estremeceu e desviou o rosto
ao ver um dente cair da boca da feiticeira.
- Vedes o que fazem os sacerdotes? Ainda quereis pertencer à Santa Ordem? - Dirigiu-se Sybilla ao rapaz que empalidecia visivelmente. Ele
limitou-se a baixar o rosto.
- Calai-vos! - Bradou-lhe o Diácono - Não vos dei permissão
para falar!.
- Malditos. Sois todos uns desgraçados - retorqui Sybilla com desdém.
O diácono fez sinal para a levarem para uma cadeira pesada
de madeira e ataram-lhe os pulsos com cordas grossas e ásperas, irritando a
pele pálida e sensível de Sybill. Porém ela nunca deu sinal de desconforto.
- Jovem, não nos provoqueis e arrependei-vos de vossos
pecados. Só assim sereis poupada -aconselhou o Diácono.
- Como posso arrepender-me de algo que não fiz?! - Retorquiu
ela indignada.
Dizei a verdade! - Ordenou o sacerdote.
- Não há verdade na vossa maldita Ordem.
Outra bofetada aterrou no seu rosto.
- Confessai vossos pecados!
- Pobres desgraçados.
Um murro no rosto partiu-lhe a cana do nariz e turvou-lhe a
visão por um bom bocado enquanto engolia sangue.
- Confessai, maldita!
Sybilla abriu o olho
inchado tanto quanto podia e fitou o Diácono com expressão séria, surpreendendo-os
com uma gargalhada estridente e assustadora.
- Pela última vez, confessai!
Nova gargalhada.
Desta vez Sybilla teve de ser arrastada até uma nova cadeira, esta coberta de pregos. A
feiticeira só o notou após se ter encostado e terem atado uma corda em volta do
seu pescoço. Um gemido de dor escapou-lhe da garganta ao sentir inúmeros pregos
penetrarem-lhe a carne.
Ninguém falou desta vez e apenas se limitavam a olhá-la
enquanto esperavam que a resistência da prisioneira findasse. O suor escorria-lhe
pela face e o corpo era percorrido por arrepios, mas ela fechou os olhos e
concentrou-se, ignorando a dor.
Quando se cansaram de esperar, libertaram-na e ataram-lhe os
pulsos a duas argolas, expondo-lhe as costas. Chicotearam-na com um chicote
triplo repleto de espigões, rasgando-lhe a pele e a carne. Desta vez a
feiticeira gritou livremente, mas amaldiçoou-os com fervor, fazendo com que
todos rezassem em uníssono.
Quando as suas costas se tornaram uma massa ensanguentada,
deitaram-na numa mesa grande e ataram-na pelos pulsos e tornozelos, esticando
os membros abertos com um torno. As junções dos ossos começaram a separar-se,
mas Sybilla manteve-se silenciosa, drogada pelos efeitos do fumo que inalara na
fogueira, a qual começava a fazer efeito. A dor continuava a ser agonizante,
mas o corpo não soçobrava. Quando um estalo se ouviu nas suas pernas,
soltaram-na e sustentaram-na pelos braços, pois ela era incapaz de andar devido
às pernas partidas.
- Que Deus tenha pena de vós – disse finalmente o Diácono e,
num silêncio acutilante, atiraram-na para a carroça.
Quando Sybilla voltou a recobrar um pouco da sua
consciência, encontrava-se no centro da aldeia, em frente ao pelourinho e uma
multidão crescente juntou-se à sua volta, a uma distância cautelosa. A
população tinha um ar cansado e faminto, a pele ressequida pelo sol devido à
seca que assolara o território há meses. Não era o ódio que os movia, apenas o desespero e a tristeza. Apenas alguns gritavam, apontando a pilha de
madeira junto ao, pelourinho:
- Queimem a bruxa!