Dona Leonor era uma distinta senhora, casada
com um proeminente empresário e mãe de dois filhos. A sua vida aparentava ser
impecável e decente, sem causar ondas nas correntes do universo. Não tinha
vícios visíveis e não costumava sair muitas vezes de casa, preferindo
permanecer no seu lar a arrumar os seus pertences e tudo o que necessitava,
mandava uma empregada ir buscar aonde quer que fosse.
Ninguém para além dos seus parentes a conhecia
verdadeiramente e as pessoas com quem se cruzava na rua ou nas lojas achavam-na
distante, porém educada. Andava sempre arrumada e bem vestida, com o cabelo
loiro bem penteado e o rosto discretamente maquilhado. Todos os comerciantes
consideravam-na uma boa cliente e geralmente não teciam-lhe mais críticas,
visto não terem nada a apontar-lhe. Contudo, os mais atentos podiam vislumbrar
o que de pior havia naquela senhora, caso olhassem para além da sua agradável
aparência e dos seus gestos suaves. Os mendigos de roupas esfarrapadas e as
suas empregadas mais humildes e destituídas de uma boa fisionomia e elegância
eram alvo do seu desprezo, tal como os idosos que por ela passavam na rua,
meros transeuntes indignos de serem contemplados pelos seus olhos. Dona Leonor
convivia com as mais altas esferas da sociedade e relegava para último lugar
tudo o que não fosse de seu esteticamente sensível agrado. Seria inconcebível
alguma das vis criaturas que povoavam as ruas embaterem na sua sofisticada
pessoa.
Enquanto o seu marido trabalhava e as suas
crianças ficavam ao cuidado das amas, entretinha-se a olhar-se ao espelho
durante horas, a experimentar as suas incontáveis jóias, os inúmeros sapatos
exclusivos e os seus perfumes caros. De vez em quando recebia em seus aposentos
um ou outro amante ocasional, desfrutando das adulações e elogios que
constantemente lhe teciam. Nas festas que frequentava com seu marido chegava sempre
em último lugar, deleitava-se com os olhares de admiração ou de inveja,
sentindo-se superior e rainha de todos os que à sua volta se encontravam, pois
ela sim era uma fiel adepta da verdadeira beleza. Contudo, o invólucro do seu
ser que era o seu corpo, retinha um espírito vazio, despojado de toda a
humanidade. O seu único medo e o qual não revelava a ninguém, era nada mais
nada menos que envelhecer. Era o que a atormentava dia e noite sem que ninguém
soubesse, o que a fazia mirar-se vezes sem conta ao espelho, temendo encontrar
uma falha na sua juventude que com o tempo de esvaía.
No dia em que fez trinta e cinco
anos, convidou para a sua festa de aniversário as figuras mais ilustres e não
hesitou em deixar de fora a sua amiga mais chegada, a qual encontrava-se muito
doente e com a pele coberta de chagas, segundo haviam-lhe dito. Naquela
fatídica noite ficou a arranjar-se no quarto enquanto o seu marido recebia os
convidados e passada uma hora e meia, surgindo finalmente no cimo da escadaria
de mármore que ia dar ao enorme vestíbulo, onde a aguardavam ansiosamente.
Adornada com diamantes refulgentes e envergando um magnífico vestido de seda
vermelha que contrastava com a sua pele de marfim, desceu as escadas com vagar
e não resistiu em olhar para o espelho que se encontrava no segundo patamar. O
que lá viu fê-la arquejar de horror e vacilar um pouco, esforçando-se por
conter-se logo de seguida. Parecia-lhe ter visto um rosto cadavérico e com a
carne putrefacta, como a de um cadáver no início da sua decomposição. Decerto
seria uma ilusão devido à ansiedade que sentia. Quando a convidaram para
dançar, avistou no vidro da janela que tinha vista para o jardim o mesmo rosto
e desviou imediatamente o olhar, concentrando-se no seu par de dança.
Rodopiando pelo vestíbulo com os seus passos elegantes, não conseguiu ignorar
os espelhos que cobriam as paredes e o tecto e sentiu-se quase a desfalecer
quando viu a figura putrefacta multiplicada em todos os espelhos. Ajudaram-na a
sentar-se numa cadeira e deram-lhe um copo com água, acalmando-a um pouco e
trouxeram o seu enorme bolo de aniversário, pousando-o á sua frente para que
ela soprasse as velas. Antes de soprar, fechou os olhos e pediu o seu desejo.
Uma corrente de ar frio trespassou-a e começou a sentir frio. Evitando olhar
para o seu reflexo nas superfícies espelhadas, apressou-se a ir buscar ao seu
quarto um xaile e, ao abrir a gaveta do aparador, olhou receosamente para o
espelho que o encimava e não ficou surpreendida ao voltar a ver o rosto
hediondo. Apesar de horripilante, lembrava-lhe a sua própria fisionomia, os
seus próprios traços delicados.
- Sim Leonor, esta é tu, por
assim dizer.
Assustada, olhou para a sua cama
e viu a mulher que tão bem conhecia sentada no seu leito, com a sua pele isenta
de feridas, limpa como antes fora. Queria perguntar-lhe como era possível que
ela se encontrasse naquele quarto mas ficara emudecida com o choque.
Adivinhando os seus pensamentos,
a sua velha amiga continuou:
- Este não é o meu corpo
material, apenas o meu espírito. Vim fazer-te uma última visita e avisar-te que
deves ter cuidado com a vida que levas. Deixa de viver tão obcecada com o que
aparentas e aprende a cultivar o teu interior, pois esse sim encontra-se a
apodrecer, uma vez que o ignoras por completo. Tens um bom marido e dois filhos
maravilhosos. Tens beleza e fortuna. Contudo, só dás atenção a ti própria e ao
que aparentas. Muda enquanto é tempo. Muda…
Numa lufada de ar gélido a mulher desapareceu
e Leonor deixou-se cair no chão, tentando respirar e recompor-se, de modo a
voltar a juntar-se à festa. Lembrou-se do desejo que pediu ao soprar as velas.
Tinha desejado que mais ninguém a não ser ela própria se apercebesse de todos
os defeitos que surgissem com a idade. Desejava ser sempre admirada e invejada,
ser sempre uma musa entre as musas. E assim teria de ser. Ao levantar-se sentiu
que o espelho à sua frente a chamava e mais uma vez quis contemplar o seu
reflexo. Desta vez deu um grito estridente, pois o seu rosto já não parecia
putrefacto. Era agora uma caveira sem pele nem carne, os seus olhos apenas duas
órbitas vazias. Não era apenas aquela visão que tanto a horrorizava mas sim o
que significava. Agora entendia o que se passava: o reflexo distorcida que vira
em todos os espelhos nada mais era que o reflexo do seu interior hediondo, o reflexo
do seu espírito conspurcado pela vaidade e pelo narcisismo. Tal como Narciso,
não conseguia deixar de olhar para o seu reflexo, indiferente ao facto de que
os espelhos não mentiam. O desejo que pedira fora concedido da pior maneira.
Seria impossível viver assim o resto dos seus dias, sem que enlouquecesse de
vez.
Ao ouvir os passos de alguém a subir os
degraus em direcção ao quarto, correu para a varanda, fechou a porta e
contemplou uma última vez o seu adorado jardim antes de subir para o corrimão da
varanda e atira-se dela abaixo. A visão do seu corpo esmagado nas lajes de pedra
era tudo menos agradável à vista, contrariamente ao que havia sido em vida.
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