- Meus filhos, finalmente trago à vossa presença a
feiticeira que provocou a seca na nossa pátria e assassinou duas crianças. Há
muito que temos tido queixas em relação a ela e agora ei-la, à vossa mercê. Se
quiserdes, não mais ela chacinará as vossas crianças nem seduzirá ou corromperá
os vossos maridos. Que faremos?
- Queimem a bruxa!
- Cortem-na aos pedaços!
- Enforquem-na!
Olhando-os com ar pesaroso, o Diácono silenciou-os
novamente.
- Meus filhos, não será necessário proceder à violência
extrema. Afinal de contas o nosso Pai é misericordioso. Entre vós há crianças,
não vos esqueceis.
Um silêncio contemplativo e pesado cobriu a atmosfera, até
ser interrompido com gritos hesitantes e agrupados, até se transformar nos
gritos de uma turba enfurecida.
- Queimem a feiticeira!
- É isso mesmo! Derretei o seu rosto provocador!
- Transformai – a em cinzas!
Ostentando uma expressão ligeiramente abatida, o Diácono
ergueu o rosto para os presentes e anunciou:
- Muito bem. A acusada será executada imediatamente.
- E defesa, não tenho nenhuma? - Indagou Sybilla,
atrevidamente.
- Se quereis dizer algo é permitido, mas o povo e o Pai Sol
são os juízes - respondeu o Diácono.
Após atarem-na ao poste, deixando os braços livres, a
feiticeira voltou-se corajosamente para o público e disse em voz alta e clara:
- Minha pobre gente insana. Achais que sou a culpada de tudo
apenas porque precisam de um bode expiatório. Quantos de vocês não ajudei? Se
alguns morreram foi porque não fui forte o suficiente para ser bem sucedida.
Pobres ignorantes. As pessoas que vos podem salvar vão sendo executadas e
acabareis condenados pela vossa intolerância. Ouvi com atenção, pois mais não
falarei: após a minha morte virá alguém, alguém cujo poder e intensidade não
poderá ser explicado por palavras. Aquele que virá fará grandes coisas e a
magia residirá nas suas obras, mas esse também abominareis e condenareis à
morte. O vosso Diácono lá estará quando tal acontecer. Malditos sejais todos
vós!
A multidão não teve tempo para reagir às suas palavras, pois
imediatamente foi ateada a fogueira e o fogo alastrou-se a uma velocidade
considerável. Contudo, Sybilla não se mostrou alarmada e deu uma das suas
gargalhadas arrepiantes. Em vez de gritar de medo, fechou os olhos e levantou bem a cabeça, chamando a si todas as suas forças. Eles não sabiam com quem se
estavam a meter e doravante brincavam com o fogo. Subitamente o céu encheu-se
de nuvens escuras e as crianças começaram a chorar. O ar estático ganhou vida e
a audiência foi surpreendida por uma leve brisa, transformando-se de seguida numa
rajada de vento. As suas vestes enfunavam com o vento e os cabelos esvoaçavam
enquanto a fogueira parecia apagar-se. Mas não foi o que aconteceu. O fogo
espalhou-se em redor, algumas faúlhas alojando-se nos telhados das casas e nas
plantas ressequidas. Rapidamente o fogo alastrou e a multidão dispersou-se aos
gritos, acorrendo ao rio para apagar o fogo crescente. Sybilla foi solta da
fogueira quase apagada e voltaram a atirá-la para a jaula.
- Onde me levam, seus desgraçados?! - Interrogou ela,
exasperada.
- Temos de fazer algo antes que destruas a nossa terra –
retorquiu o Diácono, subindo para a frente da carroça, conduzindo-a ele próprio
com o sub-diácono a seu lado com ar aterrado.
Os soldados seguiram-no a cavalo e numa corrida desenfreada,
alcançaram o lago no bosque. Antevendo o que se passaria a seguir, Sybilla
resistiu quando a retiravam e tiveram de a espancar até a conseguirem
controlar. Mesmo assim arranhou uns quantos rostos e arrancou uns quantos tufos
de cabelo.
Rapidamente a puseram de joelhos enquanto o diácono recitava
a oração aos condenados e Sybilla conseguiu libertar-se, arrastando-se e
agarrando-se ao peitilho da camisa imaculada do religioso. Ela abordava-o e
adulava-o com uma intimidade nada adequada.
- Augustus, por favor, não me desgraces ainda mais. Pelos
momentos que passámos juntos, não me afogues. Deixa-me fugir.
O diácono mostrou-se atordoado e incomodado por ter sido
chamado pelo seu verdadeiro nome, mas não cedeu.
- Não lhe dêem atenção. Ela sabe o meu nome por bruxaria –
explicou o religioso perante os olhares atónitos - Atem-na e atirem-na à água -
ordenou ele sem entusiasmo nem autoridade na voz. Dissimuladamente cobriu os
olhos, voltando-se de costas após o terem ajudado a subir ao barco, conduzindo-o
até à parte mais funda do lago.
Incapazes de suportar mais os gritos da feiticeira,
amordaçaram-na e atiraram-na ao lago. Durante vários minutos Sybilla agitou-se
desesperadamente, mas encontrava-se demasiado enfraquecida e dormente. A última
coisa que viram foi um fiapo negro do seu vestido amarrotado.
Em silêncio voltaram à cidade e constataram com desespero
que o fogo continuava persistente. O Diácono e o seu subalterno rezaram
fervorosamente de joelhos no chão empoeirado enquanto anoitecia. Sob o céu
negro, a visão contrastante do fogo era aterradora.
No interior de uma casa a ruir encontrava-se uma menina aos
gritos e seus pais gritavam de desespero no exterior, gritando por ajuda.
Subitamente o vento voltou a avivar-se e sentiram em vez de ver
uma presença densa e intoleravelmente forte e omnipresente. Quando tudo parecia
perdido, sentiram leves picadas frescas e, com uma força impressionante,
bátegas de chuva grossa começaram a cobrir a terra como um manto de água. A
população prostrou-se de joelhos, chorando e gritando, mal crendo na sua sorte.
Alguns mais atentos avistaram uma mulher de branco com a cabeça coberta por um
capuz no cimo da igreja com os braços majestosamente erguidos em direcção ao
céu. A menina na casa em chamas foi resgatada do fogo milagrosamente e
totalmente extinto e muitos recolhiam a chuva com o chapéu ou molhavam o rosto
sujo. Quando a mulher misteriosa baixou o capuz, a sua cabeleira vermelha
resplandeceu como uma chama viva e não se molhou.
- Olhem, é a feiticeira! - Gritavam as testemunhas,
apontando atónitas. Contudo, os outros nada viram, pois o espírito havia
desaparecido.
Sentada no telhado mais longínquo da igreja, o espírito que
outrora fora Sybilla contemplava a sua obra, satisfeita. Pobre gente
insignificante. Ao pensarem que a condenariam à danação eterna, libertaram-na
do fardo da sua existência, concedendo-lhe uma oportunidade para fazer algo de
grandioso antes de reencarnar em outro corpo. Mas não ainda; ainda era cedo.
Deixá-los rejubilar com a chuva que evocara, preenchendo-lhes as suas
insignificantes vidas. Afinal de contas eram leigos da magia, cegos ao poder
que trepidava à sua volta desde o início dos tempos.
Antes que o destino decidisse o seu rumo a tomar, Sybilla
investigou sobre o que levou à sua execução, acabando por descobrir o culpado.
Três dias após o acontecimento, o conde Berestorf comemorou
o seu 35º aniversário, tendo recebido centenas de cartas de felicitações. A
última a ser aberta continha um odor que lhe era familiar e dizia:
«Meu caro Berestorf. Queríeis a minha atenção e venho por
este meio concedê-la. Sabíeis que bastava uma noite para vos conhecer e
achei-vos medíocre, tão viril quanto um velho padre. Quisestes vingar-vos de
mim e instigar o povo à revolta (sei muito bem que as criaturas não tinham
alento suficiente para exigir a minha morte) e agora eis-me banida da vossa
pacata e imprestável forma de vida. Em breve vos cumprimentarei antes de
partir.»
Após um intenso enrubescer, o rosto do conde empalideceu
visivelmente. Desesperado, rasgou a carta e pediu protecção do Diácono, mas
mesmo estando este último alojado próximo de seus sumptuosos aposentos, nada
pôde fazer contra a ira de um espírito.
Uma semana depois o conde foi encontrado na cama com alguns
dentes partidos, a carne perfurada por pregos, os membros deslocados e o corpo
completamente nu e ensopado, atado e amordaçado.
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